Desenho Encravado

No início, esta foi uma mostra concebida como uma homenagem póstuma à memória do meu pai, Domingo Gómez Rabassa. Deixei de vê-lo nos últimos 16 anos da sua vida. Morreu no além-mar, em uma ilha à qual nunca retornei. Desconheço ainda se voltarei a visitá-la, pois moro no Brasil há mais de duas décadas em uma espécie de exercício do exílio como auto-imposição. 

Papai era uma pessoa singela, eletricista-enrolador de profissão, com um grande sentido da ética e da disciplina no dia-a-dia. Foi ele quem teve a ideia de me levar a realizar o exame de ingresso na escola de artes San Alejandro, em 1969, em uma época na qual eu apenas gostava de copiar os desenhos dos quadrinhos nos cadernos da escola para desespero das professoras da sexta-série. Contudo, ele enxergou em mim o cerne daquilo que lapidaria a minha vida até hoje, me encaminhando para o campo das artes. Nos vimos a derradeira vez em 1996, quando foi nos visitar em Brasília. A época eu trabalhava como professor-visitante na UnB e pudemos fazer uma viagem de fusca a uma reserva ecológica florestal, perto de Pirenópolis, em Goiás. Um mínimo, porém, simbólico pedaço do mato originário do cerrado. Naquele lugar materializamos um sonho antigo, ou melhor, uma fantasia, visitarmos juntos a floresta. Quando criança ele sempre prometera que iria me levar até ali. Conjunções e fatos do devir, eu que acabei levando meu pai à floresta.

Guardo até hoje as palavras que me disse enquanto bebíamos rum às vésperas da minha viagem ao Brasil, no portal da sua casa, no bairro da Cumbre, em Havana - “Faça a sua vida e não olhe pra atrás”. Não tenho certeza de haver compreendido o sentido das mesmas, na sua totalidade, naquela oportunidade. Porém, entendo-as agora visceralmente. Foram essas palavras que me encorajaram todos estes anos a perseguir o fio tecido pelas Parcas no percurso da minha caminhada neste plano. Nunca mais o vi e isso dói. Apenas ouvia-o pelo telefone quando falávamos. No decorrer do tempo começou a se repetir, sempre as mesmas frases, sempre apresado para que aquela chamada internacional não pesasse no nosso orçamento. Depois deixou de ir à casa do vizinho onde ficava o telefone, pois telefone fixo resulta um luxo em Havana. Minha mãe passou a me contar seus dizeres, suas dores e também a se lamentar da jornada final: agora usa muletas... não se sustenta mais na cadeira de balanço exceto quando o seguro com um lençol... já não sai da cama... passou a usar fraldas... A sua chama apagou-se, aos poucos, em 25 de fevereiro de 2012. Meu irmão, Roberto, fez algumas fotos dele com um celular emprestado, no leito do hospital. São fotos tristes que acabaram chegando às minhas mãos e que se tornaram a fonte destes desenhos encravados. Fiquei órfão. Orei pela sua alma no mosteiro de Alcobaça, em Portugal. Taquicardias, tremores, desassossego, insônia e dor passaram a me acompanhar durante um bom tempo. Eis o luto, um sentimento ou pelos menos, a forma de o vivenciar que a nossa pós-moderna sociedade tecnotrônica teima em ignorar, transformando-o em tabu e a mim e a qualquer outro que o exteriorize em paria. Ora, Huxley estava certo, pelo menos em aparência há pílulas para todas e cada uma das coisas nesta realidade espelhada onde moramos. 

Os trabalhos sobre papel que integram a presente mostra foram realizados entre 2012 e 2016. Começaram como desenhos em nanquim, mas careciam de vigor. A força necessária veio com as pontas-secas que calejaram as minhas mãos. Mais um motivo para o título embora a ideia subjacente refira-se mais a estados de ânimo objetivados na forma de gravuras, muitas das quais sem título. Há técnicas diferentes, às vezes sobrepostas, hibridando-se, embora o ponto fulcral o seja retratar uma imagem ideal e inascível de um pai ancião em um país longínquo. Apesar de que a minha mãe estivesse ao seu lado, cuidando-o, o deles era um relacionamento que poderia ter sido assinado por Tennesse Willians. Papai começou a beber para se refugiar enquanto jogava xadrez com a deidade das videiras, ao som de um rádio soviético, na sua oficina do quintal de casa. Com o tempo, Baco ganhou a partida e papai - que neste agosto faria 102 -, faleceu antes de fazer 94. Sirva esta exposição como preservação da sua memória, porque ele continuará a viver enquanto alimentar lembranças e continue a retratá-lo em infindas variações. Em última análise trata-se de uma reflexão autobiográfica por intermédio de gravuras que visa salvar dívidas com as minhas origens. 

 
Fernando Gómez
(Artista e curador)
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